Cidades
Durante reuniões do STF em Porto Velho, lideranças dos Cinta Larga defendem manutenção de suspensão da mineração no entorno de aldeias
Quinta-feira, 24 Julho de 2025 - 09:50 | STF

Representantes de aldeias do povo Cinta Larga de Rondônia e Mato Grosso contribuíram com dados e opiniões para organizar uma escuta à população indígena sobre a possibilidade de mineração no entorno do seu território. Será uma ação inédita: pela primeira vez, povos originários serão ouvidos em seu próprio território no curso de um processo judicial do Supremo Tribunal Federal (STF).
Os diálogos foram travados em duas reuniões técnicas realizadas pelo STF em Porto Velho, na terça e na quarta-feira (22 e 23). Os encontros foram uma etapa preparatória para ouvir os indígenas nas suas aldeias, em data a ser definida. De forma unânime, as lideranças Cinta Larga concordaram com a escuta de suas comunidades. Orgãos públicos federais e estaduais também colaboraram com informações.
Mineração
A escuta ao povo Cinta Larga servirá para captar a posição da comunidade quanto à mineração em uma faixa de 10 km no entorno da Terra Indígena Roosevelt. Há uma demanda para que o procedimento seja estendido às terras vizinhas Aripuanã, Serra Morena e Parque Aripuanã, onde também habitam os Cinta Larga.
Os territórios ocupam uma região a leste de Rondônia e a noroeste de Mato Grosso e abrigam quase dois mil indígenas em cerca de 60 aldeias cadastradas. O avanço do garimpo ilegal de diamante e ouro tem aumentado a degradação do meio ambiente e afetado a forma de vida dos indígenas.
A determinação de realizar as reuniões partiu do ministro Flávio Dino, relator do Recurso Extraordinário com Agravo (ARE) 1425370. A disputa judicial se estende desde 2005. No processo, a Agência Nacional de Mineração (ANM) questiona decisão do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF-1) que cancelou as permissões de lavras de recursos minerais e impediu a concessão de novas permissões no entorno das terras indígenas em questão.
Construção e diálogo
As reuniões em Porto Velho foram conduzidas pela assessora-chefe Larissa Abdalla e pelo juiz auxiliar Anderson Sobral, do gabinete de Dino, e pela juíza Trícia Navarro e por Paola Hoffmann, do Núcleo de Solução Consensual de Conflitos (Nusol) do STF.
Conforme Larissa Abdalla, a escuta aos Cinta Larga foi convocada pelo ministro diante da complexidade e do impacto do caso em discussão. “Essa decisão poderia ser proferida num gabinete em Brasília, mas o ministro Dino optou por escutar a etnia e democratizar a construção da metodologia e a forma de implementação da escuta”, afirmou a assessora. Segundo ela, o que se busca é a construção conjunta de uma proposta para viabilizar a participação efetiva do povo Cinta Larga.
O juiz Anderson Sobral destacou que a discussão é um dos processos mais antigos do gabinete de Dino e que há a preocupação de o Judiciário dar uma resposta para a controvérsia. Já Trícia Navarro afirmou que o diálogo e a cooperação interinstitucional propostos contribuem para uma solução que seja efetiva e resolva os problemas dos afetados.
Lideranças
As lideranças indígenas Cinta Larga defenderam que seja mantida a suspensão da mineração no entorno do território. Segundo as declarações, a presença de grandes multinacionais pode impactar a vida no interior da terra indígena, e seria contraditório liberar essa atividade enquanto a exploração de minerais dentro do território continua sem regulamentação, que eles defendem.
Para Gilmar Cinta Larga, um dos coordenadores da etnia na TI Roosevelt, é importante ouvir a comunidade. Ele ressaltou a necessidade de respeitar a organização e a hierarquia já adotada nas aldeias, baseadas em associações que reúnem conjuntos de aldeias. Mauro Marcelo Cinta Larga é contra a mineração no entorno das terras e fez uma defesa da mineração dentro dos territórios e controlada pelos indígenas como forma de gerar renda. Para ele, a escuta deve envolver a comunidade inteira, não só os caciques.
Juarez Cinta Larga disse que uma permissão para mineração no entorno das terras indígenas pode abrir uma brecha para que grandes empresas multinacionais explorem o local, sem benefício nenhum às comunidades. Nacosta Cinta Larga afirmou que já defendeu a mineração dentro da terra indígena, mas que, diante dos problemas associados à atividade, hoje é contra.
Segundo Valdomiro Cinta Larga, a área do entorno já tem atividades de pecuária e muito desmatamento por fazendeiros, levando à grilagem de terras. Ele afirmou que, caso a mineração seja liberada, seu povo só será alvo de mais ameaças. Sobre a escuta, defendeu a ida de autoridades até as aldeias para ouvir as comunidades. Por sua vez, Elizabete Cinta Larga declarou que o povo sofre com a presença de garimpeiros há mais de 50 anos e demanda a regulamentação da exploração dentro do território.
A coordenadora do Distrito Sanitário Especial Indígena Vilhena, Midiã Cinta Larga, ressaltou que o posicionamento institucional da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) é contrário à exploração mineral. Ao expor sua posição enquanto indígena, disse que a mineração não deve ser liberada nem no entorno e nem dentro do território. Se houver essa autorização, ela afirmou que a comunidade será afetada, com inseguranças sobre a fiscalização da atividade.
Poder público
Abrindo as reuniões, o juiz federal Ricardo Leitão, diretor do Foro da Seção Judiciária de Rondônia, assinalou que a questão é um tema muito sensível no estado e que espera bons frutos das discussões.
Pelo Ministério dos Povos Indígenas (MPI), a consultora jurídica Alessandra Vanessa ressaltou a posição institucional da pasta contrária a qualquer tipo de mineração dentro dos territórios indígenas e defendeu que a escuta do povo Cinta Larga seja feita a partir da organização da própria comunidade.
Pelo Ministério Público Federal (MPF), o procurador Reginaldo Trindade relatou as violências contra o povo Cinta Larga na região, cometidas há pelo menos 50 anos, resultado da “incompetência e desídia” do Estado brasileiro. “Vi garimpeiro casando com indígena adolescente ou anciã só para ter acesso ao garimpo. Isso fora entrada de armas, droga, álcool, falsos pastores”, afirmou. “Tudo que não presta e que é terrível tem acontecido ali, e a única instituição que lucra com isso é o crime organizado”. Trindade foi o autor da ação civil pública ajuizada em 2005 que deu origem à disputa judicial discutida agora pelo Supremo.
Também pelo MPF, a procuradora Caroline de Fátima Helpa afirmou que o histórico da população originária ali é triste, envolvendo violências diversas e assassinatos. Segundo ela, a complexidade do caso pede uma abordagem antropológica, e não só jurídica. Helpa defendeu que a comunidade decida a forma de ser consultada.
A reunião também ouviu apontamentos de entidades que atuam no processo como “amigos da corte”, colaborando com informações. Lucas Santos, pelo Instituto Brasileiro de Mineração (Ibram), disse que há 93 processos minerários impactados com a suspensão da atividade no entorno das terras dos Cinta Larga – um quarto relacionado a diamantes, e o restante distribuído entre ouro, cassiterita e outros minerais. Ele manifestou preocupação caso a paralisação seja estendida a outras terras indígenas pelo país.
Ingrid Gomes, representando a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), disse que a entidade se preocupa com a forma como a mineração se desenvolve no entorno de territórios pelo país, com altos índices de desmatamento e degradação ambiental. Também afirmou que as consultas devem respeitar protocolos já estabelecidos e ser livre, prévia e informada.
A reunião técnica também ouviu representantes da Casa Civil da Presidência da República, do Ministério de Minas e Energia, da Advocacia-Geral da União, do Governo de Rondônia, do Tribunal de Justiça de Rondônia, do Ministério Público estadual, da Defensoria Pública estadual, da Polícia Federal, da Polícia Rodoviária Federal, da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) e da Comissão Arns.
Conflitos
O caso teve início na Justiça em 2005, quando o MPF ajuizou ação civil pública contra o então Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM), atual Agência Nacional de Mineração.
Em primeira instância, a Justiça Federal em Rondônia cancelou todas as autorizações de lavra ou de pesquisa mineral no interior das áreas habitadas pelos indígenas. Depois de recursos, o TRF-1 ampliou a restrição para proibir a mineração no entorno dos territórios em um raio de 10 km.
Em 2023, o então relator do caso, ministro Luís Roberto Barroso, negou seguimento ao ARE apresentado pela ANM ao Supremo. Ele entendeu que há comprovação do dano e dos efeitos negativos do garimpo sobre a população indígena na área e que essas conclusões não podem ser revistas no recurso. Em seguida, a agência questionou a decisão individual por meio de agravo interno.