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Em Bom Futuro, o cooperativismo ressignifica o maior garimpo a céu aberto do mundo
De território marcado pela exploração e pelo trabalho infantil, Bom Futuro se tornou exemplo de cooperativismo, onde a mineração legal financia projetos sociais que transformam vidas e devolvem dignidade à comunidade.
Segunda-feira, 13 Outubro de 2025 - 15:23 | por Ingrid Valerie

Em Bom Futuro, distrito de Ariquemes, o som das máquinas que um dia moveu o maior garimpo a céu aberto do mundo foi substituído por conversas, risadas e fios coloridos nas mãos de mulheres como Ana Maria.
Crocheteira desde menina, ela aprendeu a arte escondida. “Meu pai não queria que eu aprendesse. Dizia que isso não dava futuro. Mas o crochê sempre foi o que me manteve firme”, lembra.
Décadas depois, o mesmo crochê virou fonte de renda e ponte entre ela e outras mulheres do Projeto Pequeno Príncipe, criado para acolher famílias do antigo garimpo. “Tem muita mulher aqui que era calada, triste. Agora se reúne, conversa, cria. O crochê une as pessoas”, conta Ana, hoje uma das participantes mais ativas das oficinas.
Enquanto as mães se encontram em torno das linhas e cores, os filhos participam de oficinas de dança, canto e reforço escolar, atividades que mudaram a rotina do distrito.
“Antes, as crianças ficavam sem fazer nada. Aqui não temos estrutura, eles andavam de casa em casa o dia inteiro. Agora têm atividades, acompanhamento psicológico e aprendem a respeitar mais. A casa ficou mais leve.”
O projeto, mantido pelo Fundo da Infância e Adolescência (FIA) de Ariquemes e apoiado pelas cooperativas Coopersanta e Coopermetal, transformou a antiga paisagem do garimpo em um território de reconstrução social. É o início de uma transformação silenciosa, que nasce da união entre o cooperativismo, o poder público e a solidariedade.
Do garimpo ao compromisso coletivo
O Garimpo Bom Futuro, está localizado a cerca de 87 quilômetros de Ariquemes, é reconhecido como o maior garimpo a céu aberto do mundo e o principal produtor de cassiterita do Brasil. Tem aproximadamente 2.500 habitantes, onde reúne famílias de garimpeiros.

Nos anos 1980, o distrito era sinônimo de desordem. Eram cerca de dez mil pessoas vivendo em barracos de lona, amontoadas ao redor da cassiterita, o minério que parecia prometer riqueza, mas trouxe junto doenças, prostituição e trabalho infantil.
“Não havia controle de nada: nem da produção, nem das condições de vida”, recorda o geólogo Renato Muzzolon, um dos responsáveis por estruturar o modelo atual de exploração mineral. “O desafio foi mudar a cultura do garimpeiro. Mostrar que organização é sinônimo de dignidade. Hoje, temos um modelo único no Brasil uma jazida de acesso aberto, gerida por cooperativas, construída a partir de décadas de diálogo, aprendizado e responsabilidade.”
Foi apenas nos anos 1990 que uma série de instituições, entre elas a Empresa Brasileira de Estanho (EBESA), o Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM) e o Ministério Público, firmaram o Acordo de Ordenamento do Garimpo Bom Futuro, marco que deu origem ao cooperativismo mineral na região.
O pacto estabeleceu compromissos que mudaram o destino do distrito:
- construção da Escola Municipal Padre Ângelo Spadari, para atender 300 alunos e apoiar o Programa de Erradicação do Trabalho Infantil;
- implantação da sede urbana de Bom Futuro fora da área de extração;
- e criação de um modelo de mineração cooperada, com gestão social e ambiental.

Em 2005, os direitos da jazida passaram para a Coopersanta, que consolidou um modelo de mineração sustentável e responsável. “Desde o início, entendemos que o desenvolvimento não se mede apenas por resultados financeiros, mas pelo impacto positivo na vida das pessoas”, explica Jaime Valentim Morgan, presidente da Coopersanta.
“O Projeto Pequeno Príncipe nasceu dessa visão: devolver à comunidade o cuidado, o apoio e a esperança que sempre nos sustentaram.” Afirma Jaime.
Três décadas depois do pacto que reorganizou o garimpo, Bom Futuro encontrou um novo equilíbrio entre produção e cidadania.
“A Coopersanta nasceu da união de trabalhadores que acreditavam ser possível exercer a mineração de forma legal, sustentável e humana. Investir em ações sociais é uma forma de retribuir à sociedade o que ela nos oferece e garantir que o futuro das crianças de Bom Futuro seja diferente do passado”, afirma Jaime Valentim Morgan, presidente da Coopersanta e vice-presidente da Coopermetal.
Essas ações marcaram o início de uma nova etapa para o garimpo de cassiterita. O território que antes simbolizava exploração e improviso passou a representar um modelo pioneiro de cooperativismo mineral, um modelo que, ao longo de três décadas, evoluiu a partir de um único princípio: crescer sem deixar pessoas para trás.
Projeto Pequeno Príncipe

A ideia do projeto começou como um pedido insistente de Maria Neuza, assistente social e gestora do FIA de Ariquemes. Desde 2012, ela visitava Bom Futuro com frequência e via o mesmo retrato: famílias vulneráveis, mães sem apoio, crianças crescendo sem espaço para brincar ou sonhar.
“O que mais me pediam era atendimento psicológico”, lembra. “Eu via crianças tristes, mulheres deprimidas, famílias desestruturadas. O sofrimento estava ali, na porta das casas, mas não havia rede de apoio.”
Foi dela a proposta que, anos depois, se tornaria realidade. Em fevereiro de 2024, a Prefeita Carla Redano lançou oficialmente o Projeto Pequeno Príncipe no distrito, uma parceria entre o FIA, as cooperativas Coopersanta e Coopermetal, e o Instituto Educacional e Social da Polícia Militar Mirim (7º BPM), responsável pela execução.
👉 Prefeita Carla Redano lança projeto "Pequeno Príncipe" no Distrito Bom Futuro
“Eu esperava algo que levaria seis meses, um ano. E, de repente, ouvi: ‘em dez dias estará pronto’”, conta Maria, sorrindo. “As cooperativas entraram com tudo: custearam parte da estrutura, ajudaram na montagem, e em menos de um mês o espaço estava mobiliado. Foi mágico. Sem elas, o projeto não existiria.”
Desde então, o espaço se tornou o principal ponto de apoio social da comunidade. Entre março e dezembro de 2024, foram 3.570 atendimentos diretos, 1.239 consultas psicológicas individuais e 2.331 atendimentos em grupo e rede, envolvendo o CRAS, o Conselho Tutelar e o Programa Criança Feliz. Mais de 80 mulheres foram capacitadas em oficinas de crochê e artesanato uma delas, Ana Maria.

O projeto é financiado através do Fundo da Infância e do Adolescente (FIA), órgão municipal responsável por coordenar e apoiar ações voltadas à proteção de crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade, é o único em Rondônia com equipe própria, sede estruturada e orçamento contínuo.
Em 2024, o fundo movimentou R$ 311 mil, e para 2025 tem previsão de R$ 292 mil em recursos. Sob a gestão de Maria Neuza, o FIA passou a unir esforços com as cooperativas Coopersanta e Coopermetal para transformar o sonho de um espaço de acolhimento em realidade.
Campanha Declare Seu Amor
Para a juíza Ana Valéria Dantas Leite, idealizadora da campanha “Declare Seu Amor” do Tribunal de Justiça de Rondônia, o impacto social de Bom Futuro é exemplo de como o cooperativismo pode se tornar instrumento de justiça.
“O Judiciário é um agente de transformação quando caminha ao lado da comunidade. A solidariedade é uma força que dá sentido humano ao desenvolvimento. Cada criança acolhida, cada família amparada, representa a justiça saindo do papel”, afirma.

A campanha permite que cidadãos e empresas destinem parte do Imposto de Renda ao FIA, fortalecendo iniciativas como o Pequeno Príncipe. A arrecadação em Ariquemes saltou de R$52 mil em 2024 para R$147 mil em 2025, um aumento de mais de 180% nas doações destinadas ao fundo. Somando todas as fontes de recursos, doações, verbas municipais e emendas, o FIA mobilizou R$311 mil em 2024 e tem previsão de R$292 mil em 2025.
“Quando o poder público, as cooperativas e a sociedade civil caminham juntos, o resultado é mais que estatística, é vida transformada”, concluiu a magistrada.
O projeto além dos números
Para Maria Neuza, o impacto vai além dos números. Ela lembra de um caso que marcou toda a equipe. Entre as oficinas, o acompanhamento psicológico e as rodas de conversa, surgem histórias de cura, de reencontro e de recomeço, como a de Bruno, um menino de dez anos.
Em 2025, ele viu a vida mudar depois de um acidente doméstico: o portão da casa caiu sobre o irmão mais novo, de dois anos. A mãe, em desespero, culpou o filho. “Foi devastador. Essa mãe gritava que o menino tinha matado o irmão. A psicóloga cancelou todos os atendimentos do dia e foi até lá. Precisava acolher a dor, o luto e a culpa”, conta Maria.
“O acolhimento foi imediato. Nosso papel era evitar que essa culpa virasse trauma. No fim da tarde, a mãe conseguiu abraçar o filho e entender que ele não teve culpa. Aquele abraço foi o começo de uma nova vida para os dois.”
Se o projeto não existisse, talvez essa história tivesse terminado de outra forma. Ali, o Pequeno Príncipe mostrou o que significa existir: ser presença quando a dor parece maior que a vida.
Do minério à consciência social
O modelo cooperativo implantado em Bom Futuro uniu mineração e responsabilidade social, uma combinação rara no setor.
O que começou como um pacto para ordenar o garimpo virou um movimento de transformação coletiva. Em 2025, a ONU declarou o Ano Internacional das Cooperativas, reconhecendo o papel dessas organizações na construção de um mundo mais justo, sustentável e inclusivo.
“Cuidar das pessoas é o que dá sentido à mineração. O cooperativismo é a prova de que é possível crescer sem explorar e produzir sem destruir”, explica o geólogo Renato Muzzolon, um dos responsáveis pela estruturação técnica do modelo.
A Coopersanta e a Coopermetal destinam parte de sua receita a projetos como o Pequeno Príncipe. Esses recursos garantem o funcionamento de oficinas, acompanhamento psicológico, reforço escolar, atividades esportivas e capacitações ações que, juntas, alcançaram mais de 3.500 atendimentos diretos em menos de um ano.
E se perguntarem como as cooperativas constroem um mundo melhor…
Lá em Bom Futuro, essa resposta está nas mãos calejadas que agora trançam fios e reconstroem histórias. O distrito, que um dia viveu do brilho efêmero do ouro, aprendeu com as cooperativas a lapidar outro tipo de riqueza: a que nasce do trabalho coletivo, da dignidade e do pertencimento.
Há três décadas, essa comunidade soma forças e reparte conquistas, provando que o verdadeiro desenvolvimento não vem da extração, mas da união.
“Bom Futuro talvez tenha nascido do garimpo, mas o que reluz dali agora é o resultado de um novo tipo de escavação, a que encontra nas pessoas o verdadeiro ouro”, resume Jaime Valentim Morgan, presidente da Coopersanta.