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Sonegação fiscal: o crime que o MPRO enfrenta para garantir direitos na Amazônia

A atuação integrada no combate à sonegação fiscal garante que recursos públicos retornem à sociedade e financiem políticas essenciais em Rondônia.

Segunda-feira, 13 Outubro de 2025 - 14:31 | Por Ingrid Valerie


Sonegação fiscal: o crime que o MPRO enfrenta para garantir direitos na Amazônia
Raimundo Breves, indígena Torá, vive acamado em Porto Velho após deixar a aldeia Panorama (AM), em busca de tratamento médico

Aos 84 anos, Raimundo Breves Pereira vive em uma casa simples na zona Leste de Porto Velho, longe do silêncio da floresta que deixou para trás. Indígena do povo Torá, nasceu na aldeia Panorama, às margens do rio Anamã, no interior do Amazonas, onde caçava, pescava e plantava mandioca até que a saúde o obrigou a deixar a terra natal.

Hoje, acamado depois de sofrer um AVC, Raimundo observa o tempo passar. O corpo já não responde, mas os olhos ainda acompanham o movimento da vida ao redor.

“Lá não tinha como cuidar dele. O médico da Funai vai de mês em mês, de barco grande, mas não tem estrutura, não tem remédio, não tem hospital”, conta o filho, Edmilson Breves, que deixou tudo para vir cuidar do pai. “A gente veio pra cidade só pra tentar salvar a vida dele. Os irmãos juntaram o que tinham, e o médico disse que aqui teria mais chance. Mas quando chegamos, ele já caiu. Desde então, vive acamado.”

Sonegação fiscal: o crime que o MPRO enfrenta para garantir direitos na Amazônia
Documentos e remédios de Raimundo

A família sobrevive com a aposentadoria de Raimundo. “Ele recebe um salário-mínimo. É com esse dinheiro que pago água, luz, comida, remédio... não tem ajuda de ninguém, só de Deus mesmo.”

Enquanto o ancião Torá conta os dias entre remédios e promessas, o Estado contabiliza as perdas deixadas por quem frauda o fisco. Os recursos que deveriam financiar saúde e assistência muitas vezes se perdem antes de chegar à ponta, desviados por fraudes e sonegações que esvaziam os cofres públicos.

E entre essas duas esperas, a do cidadão e a do recurso público, mora uma das desigualdades mais silenciosas da Amazônia.

“A sonegação fiscal parece um crime técnico, mas na prática ela tira remédio de paciente e vaga de hospital”, afirma Laíla Nunes, promotora de justiça do Ministério Público de Rondônia e coordenadora do GAESF, Grupo de Atuação Especial de Combate à Sonegação Fiscal e aos Crimes contra a Ordem Tributária.

“O combate à sonegação é mais do que uma questão de arrecadação. Quando deixamos de recuperar esses valores, o Estado perde a capacidade de investir em políticas públicas. Isso significa menos recursos para saúde, educação, segurança e infraestrutura. A sonegação, portanto, não é apenas uma infração econômica, é uma violação direta de direitos fundamentais.”

De acordo com dados do GAESF, os danos tributários denunciados em Rondônia somaram R$ 248 milhões em 2024, valor que representa o montante sonegado em investigações encaminhadas ao Ministério Público. O resultado mostra que o cidadão comum, como Breves, sofre as consequências de uma fraude que não cometeu.

“A sociedade ainda não tem noção do mal que esses crimes causam, há uma naturalização perigosa, como se fosse inofensivo não emitir uma nota. E quando o MP combate à sonegação, ele não defende apenas a lei, defende o direito à vida”, resume Laíla Nunes.

Sonegação fiscal: o crime que o MPRO enfrenta para garantir direitos na Amazônia
Sonegação fiscal: o crime que o MPRO enfrenta para garantir direitos na Amazônia

A diferença entre esses dois caminhos explica o impacto da sonegação na vida de quem depende das políticas públicas. É por isso que o Ministério Público de Rondônia atua para transformar o combate à fraude fiscal em garantia de direitos humanos.

GAESF e CIRA: quando o Estado age em rede

Criado em 2022, o GAESF se tornou o braço especializado do MPRO no combate à sonegação e aos crimes contra a ordem tributária. O grupo atua de forma integrada com auditores da SEFIN, procuradores da PGE e equipes da Polícia Civil, acompanhando investigações em todo o estado, como a operação que apurou R$ 90 milhões em sonegação fiscal em Rondônia, conduzida em conjunto pelo CIRA e pelo Ministério Público.

“Nosso foco é garantir que cada centavo desviado retorne à sociedade. Cada operação representa justiça fiscal, mas também justiça social. É o Estado dizendo ao cidadão: ‘esse recurso era seu e voltou para o seu benefício’”, explica Laíla.

O trabalho ganhou reforço em 2022 com a criação do Comitê Interinstitucional de Recuperação de Ativos (CIRA), que une o MP, a PGE, a SEFIN e a Polícia Civil.

“O CIRA é uma engrenagem que funciona como um corpo único”, diz Thiago Alencar, procurador da PGE. “A SEFIN identifica e representa, o MP investiga e denuncia, a PGE executa e a Polícia Civil rastreia. Todos trabalham para o mesmo fim: fazer o dinheiro voltar.”

“Rondônia é um estado com fronteiras extensas, produção agropecuária forte e áreas de mineração. Tudo isso torna o combate à sonegação mais complexo. Temos redes que operam com empresas de fachada, movimentam gado e mercadorias sem nota e se aproveitam da informalidade para lavar dinheiro. É por isso que precisamos agir de forma integrada, com inteligência e persistência.”

Os desafios territoriais 

Rondônia, um dos nove estados da Amazônia Legal, tem uma economia pujante e diversificada, sustentada pela agropecuária, pelo extrativismo e pelos serviços. A bovinocultura de corte e leite, a soja e a piscicultura, movimentam grande parte do PIB estadual, que também se apoia no extrativismo vegetal e mineral, como madeira e cassiterita.

Apesar desse desempenho, os indicadores sociais mostram que o crescimento econômico nem sempre se traduz em qualidade de vida. De acordo com o portal Amazônia Legal em Dados, o PIB per capita de Rondônia é 18,7% inferior ao do Brasil.

Mesmo assim, a expectativa de vida no estado é de 75,8 anos, abaixo da média nacional (77,1), o que evidencia que a riqueza produzida nem sempre retorna em forma de políticas públicas, saúde e infraestrutura.

Sonegação fiscal: o crime que o MPRO enfrenta para garantir direitos na Amazônia
Expectativa de vida na Amazônia Legal é um ano menor que a média nacional — reflexo direto das desigualdades regionais (IBGE, 2023)

Mas esse crescimento convive com fragilidades típicas da região: informalidade, fronteiras abertas e grande dificuldade de fiscalização em áreas de difícil acesso. É nesse terreno que crimes tributários encontram espaço, reduzindo a capacidade do Estado de reinvestir o que arrecada e aprofundando desigualdades.

“Essas fraudes nos afetam enquanto Amazônia”, afirma Laíla Nunes. “Quando o Estado perde arrecadação, perde também a capacidade de proteger o meio ambiente e garantir um desenvolvimento sustentável.”

Sonegação fiscal: o crime que o MPRO enfrenta para garantir direitos na Amazônia
Rondônia cresce acima da média da Amazônia Legal, mas ainda distante do restante do país. Fonte: Amazônia Legal em Dados (IBGE, 2023)

“Temos dificuldade em localizar patrimônios pela extensão territorial e pelas fronteiras abertas”, complementa Thiago Alencar. “Ainda há lavagem de dinheiro com áreas públicas e redes que usam o campo e a floresta como esconderijo.”

Inovação e inteligência fiscal

Para enfrentar esse cenário, o Estado aposta em tecnologia.

“Hoje usamos inteligência artificial nos sistemas Mapinguari e Kanoê, que cruzam dados da Junta Comercial e de cartórios para rastrear patrimônios e redes de empresas”, explica Thiago Alencar.

Enquanto o MP atua na investigação, a SEFIN trabalha na prevenção e educação fiscal.

“As representações fiscais são o ponto de partida para as ações do GAESF e do CIRA”, diz Luiz Fernando, secretário da SEFIN. “É a partir delas que conseguimos mapear indícios de sonegação e iniciar as investigações. O importante é que o contribuinte perceba o risco de não cumprir a lei e entenda o valor social de agir corretamente.”

“O Estado não quer punir quem trabalha. Quer corrigir distorções. A maioria dos empresários quer estar regular, mas precisa de orientação. Por isso investimos em programas como o FIS Conforme e o Contribuinte Legal, que estimulam a autorregularização e a cultura da conformidade.”

Esse modelo traduz o conceito de solidarismo fiscal, a ideia de que pagar imposto é um ato de solidariedade coletiva, que transforma o esforço de alguns no direito de muitos.

O dinheiro que volta aos cofres públicos

Os resultados são visíveis.  Segundo a Secretaria de Estado de Finanças (SEFIN/RO), o Estado conseguiu reaver R$ 14 milhões em 2023 e R$ 23,3 milhões em 2024, um crescimento de 66% em relação ao ano anterior, resultado de representações fiscais, mediações e execuções decorrentes das ações conjuntas entre MP, PGE e Polícia Civil. Cada operação representa não apenas o retorno financeiro, mas também uma mudança de comportamento nos setores envolvidos.

Sonegação fiscal: o crime que o MPRO enfrenta para garantir direitos na Amazônia
Valores arrecadados com o combate à sonegação fiscal em Rondônia (2023–1º tri. 2025). Fonte: SEFIN/RO, 2025.

“Cada operação não apenas recupera valores, mas muda o comportamento do setor”, explica Luiz Fernando.

Os valores recuperados voltam ao caixa único do Estado, reforçando o orçamento que financia políticas públicas em áreas como saúde, educação e infraestrutura.

“Cada real recuperado é um leito a mais, um medicamento garantido, uma fila que encurta”, completa Thiago Alencar.

O combate à sonegação começa na ponta, no gesto simples de pedir nota fiscal.

“O cidadão que não pede nota também participa da engrenagem da sonegação”, lembra Luiz Fernando. “Pedir nota é um ato de cidadania fiscal.”

O MP e a SEFIN têm investido em ações de educação tributária, como o Programa Nota Legal Rondoniense e o MP Itinerante, que levam palestras e atividades educativas a escolas e comunidades rurais.

“Educar para o imposto é educar para a cidadania. A criança nasce com CPF e já é contribuinte. É preciso ensinar desde cedo o valor da legalidade e da transparência”, conclui o secretário.

Para o procurador Thiago Alencar, a desonestidade fiscal é uma forma silenciosa de violência. “Ela causa danos tão graves quanto um crime contra a vida. Porque quando o Estado deixa de arrecadar, deixa também de salvar.”

A jornalista indígena Luciene Kaxinawa, coordenadora-geral da Articulação Brasileira de Jornalistas Indígenas, explica que os povos originários sentem com intensidade os efeitos da ausência de investimento público.

“Sem os recursos públicos revestidos em atendimentos aos povos indígenas, resulta na anulação da nossa existência, das nossas culturas e saberes. 

Quando o dinheiro público não chega, o que se perde não é só infraestrutura é dignidade o mínimo para se ter um bem viver. A ausência do Estado se traduz em sofrimento, em desnutrição, em abandono. E a sonegação, nesse contexto, é mais uma forma de violência contra os povos indígenas da Amazônia”, afirma.

Sonegação fiscal: o crime que o MPRO enfrenta para garantir direitos na Amazônia
Certidão que comprova a origem indígena da família Torá

Enquanto Breves segue cuidando do pai, o Ministério Público e os órgãos parceiros reforçam as ações de combate à sonegação fiscal em Rondônia.

A meta é que os valores recuperados voltem em forma de políticas públicas, especialmente para quem, como Raimundo, ainda espera que o Estado chegue a tempo.

Na floresta, na cidade ou nos bastidores da Justiça, o combate à sonegação é, acima de tudo, uma defesa da vida na Amazônia.

Quer saber mais sobre o tema?

Ouça a entrevista com Paulo Gabriel Adriano Pereira Pinto, autor da tese Crimes tributários como violação dos direitos dos vulneráveis: análise do papel do Ministério Público na defesa de políticas públicas, onde comenta sua pesquisa. O material tem participação da promotora Laíla Nunes e do procurador Thiago Alencar. 

🔗 Ouça o episódio completo:

 

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