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A destruição sumária de equipamentos de garimpo e os limites da atuação estatal
Segunda-feira, 17 Novembro de 2025 - 14:06 | * Por Hélio Vieira
Nos últimos anos, multiplicaram-se as operações ambientais realizadas pelo IBAMA e pela Polícia Federal nas regiões de Humaitá/AM e Porto Velho/RO, especialmente ao longo do Rio Madeira, importante eixo de circulação e de exploração econômica local.
Relatos de moradores da região e registros do noticiário local dão conta de que as ações, voltadas ao combate do garimpo ilegal, passaram a adotar como rotina a destruição sumária e imediata — por fogo ou explosão — de balsas, acampamentos flutuantes, motores, escavadeiras, dragas e até aeronaves encontradas nas proximidades dos pontos de extração mineral.
Em diversos registros públicos, filmagens e relatos, é possível observar embarcações incendiadas no leito do rio, motores lançados às chamas e aeronaves queimadas em clareiras abertas às pressas pelas forças de repressão. Não raramente são equipamentos de alto valor econômico, pertencentes a pequenos empresários, trabalhadores ribeirinhos ou famílias que dependem dessa estrutura para sobreviver, sejam eles culpados ou não pelo ilícito ambiental apurado.
Mais grave: tais destruições não têm ocorrido apenas em áreas remotas da floresta amazônica, onde a justificativa de difícil remoção poderia, em tese, ser sustentada. Ao contrário, diversas operações se dão próximas às áreas urbanizadas, a poucos quilômetros de portos, estradas, galpões, delegacias e estruturas que permitiriam, com facilidade, a apreensão e o transporte dos bens para guarda judicial.
Apesar disso, balsas são queimadas mesmo estando ancoradas e inativas, aeronaves são destruídas em terra firme e maquinários são inutilizados sem qualquer avaliação técnica real sobre a viabilidade de remoção. Nesses casos, sequer existem flagrantes de supostos crimes ambientais.
A consequência desse modus operandi é a imposição de uma pena sumária, aplicada no calor da operação, sem processo, sem contraditório e sem a mínima oportunidade de defesa — uma conduta que desborda dos limites legais e viola frontalmente a Constituição Federal.
É fato que tanto a Lei nº 9.605/1998 (Lei de Crimes Ambientais) quanto o Decreto nº 6.514/2008 preveem a possibilidade de destruição de instrumentos utilizados na prática de infrações ambientais. Todavia, este poder não é absoluto nem generalizado: trata-se de medida excepcionalíssima, limitada por requisitos estritos.
O artigo 25, da Lei 9.605/1998, em seus parágrafos 4º e 5º, prevê a apreensão e destinação dos produtos e dos instrumentos utilizados na prática da infração, entre eles a venda e a doação, após a sua descaracterização. A destruição deveria ser a exceção, permitida somente quando estes forem de difícil remoção ou representarem risco às autoridades fiscalizadoras. O legislador, ciente da extensão amazônica e dos desafios logísticos, criou uma exceção limitada, voltada exclusivamente a situações em que realmente não haja alternativa possível.
Já o Decreto nº 6.514/2008, em seu artigo 111, reforça a excepcionalidade ao determinar a necessidade de justificativa técnica; oregistro detalhado do bem; a lavratura do auto correspondente e a demonstração explícita da inviabilidade de remoção. Ou seja, nenhuma destruição pode ocorrer sem motivação concreta, individualizada e documentada.
O que se vê, em forma de destruição sumária, é uma ruptura da regra geral do sistema jurídico, que exige a apreensão do bem, a instauração de um processo administrativo, o respeito ao contraditório e à ampla defesa, uma decisão final fundamentada, e em último caso, o eventual perdimento decretado pela autoridade competente. O uso da exceção como regra transforma a previsão legal em instrumento de abuso e confere ao agente fiscalizador um poder que a Constituição jamais autorizou: o de decidir, unilateralmente e sem controle, o destino do patrimônio privado.
Nas operações do Rio Madeira, o que se percebe é uma distorção profunda da finalidade legal: o mecanismo de destruição virou rotina operacional. O que era excepcionalidade virou abuso e a prática administrativa viola a lei.
Em ambiente ribeirinho com intenso fluxo de embarcações, portos próximos, caminhões disponíveis e apoio logístico em ambas as margens do rio, não há razão plausível para que balsas sejam queimadas ao invés de rebocadas. O mesmo vale para aeronaves destruídas a menos de 50 km de aeródromos e hangares operacionais. Nada disso se enquadra na “dificuldade absoluta de remoção” exigida pela lei.
Numerosos relatos indicam que a autuação é lavrada depois da destruição, que os trabalhadores ou responsáveis sequer são identificados, que não há notificação formal antes da perda do bem e que relatórios fotográficos são incompletos ou inexistentes.
A queima de uma draga ou balsa, como tem ocorrido, significa a perda de anos de trabalho, a inviabilização completa da atividade econômica do trabalhador, o endividamento severo e a destruição da principal ferramenta de subsistência. Ao invés de proteger o meio ambiente, as destruições acabam por causar ainda mais poluição do ar, dos rios e das florestas.
O Estado não pode, por mera conveniência operacional, impor um dano irreparável sem antes assegurar ao acusado seu direito natural de contestar a acusação. Quando se observa o conjunto das operações, é possível afirmar que a prática consolidada viola vários princípios centrais, destacando-se o devido processo legal (art. 5º, LIV), a ampla defesa (art. 5º, LV) e o dever de motivação da administração (art. 37, caput).
Não existe pena — inclusive a pena de perdimento — sem processo, contraditório e decisão fundamentada. A destruição antecipada substitui o juiz pelo agente fiscal, ferindo a separação de poderes. A propriedade não é absoluta, mas também não pode ser suprimida arbitrariamente. O confisco administrativo indireto, sem decisão final, é inconstitucional.
Destruir uma máquina de centenas de milhares de reais quando existem meios seguros de apreensão constitui ato desproporcional, desnecessário e excessivo.
A destruição exige motivação específica, e não justificativas genéricas repetidas em relatórios padronizados.
As operações no Rio Madeira revelam um cenário preocupante de ampliação de poderes estatais sem o correspondente controle institucional. A destruição sumária, que deveria ser exceção, tornou-se prática ordinária, aplicada indistintamente, sem critérios técnicos e sem as garantias constitucionais mínimas.
A proteção ambiental é um valor constitucional de primeira grandeza, mas ela não autoriza o Estado a atropelar direitos fundamentais nem a impor punições imediatas e irreversíveis sem processo. Defendemos o direito dos trabalhadores afetados, sejam ribeirinhos, garimpeiros, operadores, pilotos, barqueiros, de serem ouvidos.
Essas pessoas possuem o direito de saber do que são acusadas, de apresentar defesa, de contestar a autuação, de preservar seu patrimônio até decisão final e de não serem julgadas no calor da operação e punidas sem contraditório.
Repressão ambiental não pode significar aniquilação de direitos. O combate ao garimpo ilegal deve ser firme, mas jamais arbitrário. Em um Estado Democrático de Direito, ninguém — absolutamente ninguém — pode ser privado do seu meio de vida sem antes ser ouvido.
* Hélio Vieira é advogado em Rondônia