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A nova caverna de Platão – parte 1

Sexta-feira, 25 Setembro de 2020 - 11:59 | por Rodrigo de Souza


A nova caverna de Platão – parte 1

A cada julgamento seu, você avoluma o rio que desagua no mar e aumenta as marés que chegam às praias invadindo as nossas vidas de alguma maneira.
Este artigo será dividido em duas partes, iniciando nesta semana e a última parte na próxima.

Vivemos tempos estranhos, não é apenas o “novo normal”, faz tempo que vimos mudando como sociedade, nossos parâmetros para definir o certo e o errado sofreram uma grande metamorfose. A internet nos deu voz, mas impressionantemente, ela como representante máximo da modernidade e da evolução fez eclodir, vir à tona, alguns de nossos sentimentos mais primitivos, ela se tornou a nossa “caverna de platão” – mito da caverna, onde na sua obra mais complexa, A República, Platão narra a conversa dos personagens Sócrates e Glauco, trazendo à baila o que seria o conhecimento da verdade (em uma caverna há prisioneiros que estão ali desde sempre, eles estão acorrentados e veem o mundo através das sobras projetadas em uma parede a partir de uma fogueira. Esta fogueira está no alto e reflete as imagens distorcidas das pessoas que passam na estrada e isso é todo o conhecimento de que possuem e acreditam que isso representa a totalidade do mundo. Em certo momento um dos prisioneiros se liberta e foge para a civilização deparando-se com um mundo totalmente diferente, sendo de início ofuscado pela luz do sol, mas logo percebendo que as sombras eram apenas cópias imperfeitas da realidade, então ele volta para contar a boa nova onde ante à descrença de todos e o medo de que “corrompesse” os demais, é tido como louco e mentiroso pelos pares sendo preso e morto a fim de não propagar mais inverdades. Esse mito revela a relação estabelecida pelos conceitos de escuridão e ignorância, luz e conhecimento, onde vemos através dela e tudo o que acreditamos ou aceitamos partem das sombras distorcidas e dos ecos que ressoam em suas paredes, as conclusões a que chegamos sempre são uma distorção da realidade, assim pode ser entendida a internet hoje, uma representação do que seria a verdade, onde é mostrado apenas a visão que interessa, que é tida e se deseja tornar “verdade”, busca nos enredar e nos tornar parte de um grupo que apenas ressoa um mesmo mantra.

Sob uma perspectiva freudiana, a internet deu liberdade para o ID se tornar nosso interlocutor, sem ressalvas ou limites, nos achamos no direito de julgar, apontar e condenar quem quer que seja sem o mínimo pudor, empatia - capacidade de sentir o que o outro sentiria se estivesse no lugar dele - ou compaixão que pode ser entendida como o sentimento de piedade pelo outro, buscando ajudar.

A partir do paradigma da Neuro Psicologia que estuda relações entre o cérebro e as manifestações do comportamento humano, a geração atual e as próximas precisarão “exercitar” partes do cérebro, tais como o hipocampo (memória, motivação, navegação espacial), córtex frontal (pensamento abstrato, movimento) e pré-frontal (função executiva: planejamento, tomada de decisão, controle inibitório, atenção) e de uma “escolarização” no que tange aos termos há pouco citados; empatia ou compaixão são condições necessárias à socialização e a sobrevivência como espécie, além do que, podem ser aprendidas, mas desnecessárias, aparentemente, no mundo tecnológico, afinal, a nossa conexão é com um teclado, uma tela e bilhões de algoritmos determinando nossos gostos e preferencias, o feedback se dá por joinhas, emojis ou mais likes, não existe contato humano, sentimentos, ou a necessidade de estar no lugar do outro.

Psicologicamente isso é extremamente danoso, causando uma necessidade extrema de aprovação a todo instante, assim como um medo de se expor e não ser considerado dentro dos padrões. Situações assim podem direcionar para sentimentos de culpa, vergonha, desamparo e desmerecimento. Uma pesquisa dos anos 60 – o experimento de Milgran - colocava duas pessoas em lados opostos de uma cabine sem se verem, eram feitas perguntas e a cada resposta errada aquele que perguntou poderia dar um choque no outro por meio de uma máquina e a intensidade ia aumentando a cada resposta errada de acordo com a vontade do operador, aquele que dava o choque só ouvia os gritos do ouro lado da cabine; a pesquisa era repetida com as partes se vendo. Ao final percebeu-se que a intensidade dos choques era muito mais intensa quando as partes não se viam (não eram dados choques verdadeiramente, havia um ator na outra cabine, mas o testando não sabia) sendo que ninguém foi até a outra cabine ver a situação daqueles que tomavam o choque, sob a desculpa “de que seguiam ordens”, na internet ocorre a mesma coisa, eu me liberto de qualquer pudor, misericórdia, empatia ou amarra moral, não percebo o outro como ser humano com sentimentos, a busca é pela minha satisfação, pelo meu gozo momentâneo, sem nenhuma limitação de consciência, me protejo a partir de frases do tipo “foi só um comentário”, “só dei a minha opinião”, “ele que fez isso consigo mesmo por meio das suas atitudes”. A dor e o sofrimento do outro são desconsiderados.

Se a narrativa tiver um viés Darwiniano, posso dizer que ao me deparar com o teclado e as redes sociais, todas abertas, sem amarras, leis, parâmetros morais ou mesmo identificação podendo trazer à tona todo o tipo de sentimento e ressentimento não trabalhado adequadamente fazendo com que me sinta poderoso e forte sendo a todo tempo incentivado e motivado por outros internautas anônimos (da mesma espécie), comungam as mesmas ideias de grupo.

Em situações limite posso ser tomado pelo meu sistema límbico (isso me faz lembrar de um desenho célebre do Pateta onde ele é um cidadão pacato, mas ao entrar no carro e sentar em frente ao volante se transforma em um “monstro, um psicopata”), o poder está na amigdala (regula o comportamento sexual, agressividade, respostas emocionais e reatividade), o hipocampo e córtex pré e frontal são sequestrados, o que importa é lutar e subjugar o outro, “fuga ou ataque”, é isso que nos fez sobreviver pelas eras, e parece que o mundo virtual está nos remetendo à escuridão novamente.

Até o narcisismo não é mais autêntico, ele é medido em curtidas e comentários idiotas, para tanto, a cada dia criam-se novos sinais – emojis – para dar significado aos nossos sentimentos, cada vez mais rasos e sem conteúdo, perdeu-se a condição de raciocinar, pensar e escolher por nós mesmos. Desconhecemos os nossos próprios sentimentos, as crianças e alguns jovens não identificam o que sentem, quando sentem ou porquê sentem determinada coisa e quando isso ocorre, lá vem o sistema límbico para canalizar toda a raiva e frustração por não entendermos ou mesmo por não sermos ou termos aquilo que as mídias sociais dizem que precisamos ser ou ter.

Nos desconectamos de nós mesmos e não suportamos a frustração, não somos resilientes e a busca desenfreada é por uma pseudo-aceitação e o não sofrimento, vende-se a ideia de que precisamos nos enquadrar para sermos legais e que precisamos estar sempre “felizes”. Vivemos a era dos impostores, dos falsos moralistas e das “verdades concordantes”. A constatação que a evolução se dá pela sobrevivência e adaptação dos mais fortes está caindo por terra, pelo menos a definição de mais forte, com certeza, sofreu mutação.

Com a necessidade de uma quarentena forçada onde as relações pessoais foram fortemente impactadas, onde cada vez mais as pessoas se encapsulam e introjetam seus sentimentos precisando digerir sozinhos a crueldade e a solidão de um planeta lotado de almas vazias, onde a fala se dá pelo toque de uma tecla, onde o falar foi substituído por um símbolo, onde sobram minutos de telefone e faltam gigas de pacotes de dados, num sistema em que a “não fala”, tão importante para a psicanálise é relegada ao segundo plano tendo em vista que tais pontuações, inflexões e pausas perdem o seu teor vital no mundo virtual.

A sociedade está cada vez mais acuada, mais tensa, mais propensa a reagir, atacar antes que me ataquem, destruir, antes que me destruam, não se sabe mais quem é o inimigo, ele é um vírus? Ele está no ar? O hospedeiro é outro ser humano? E assim é preciso manter distância, um toque, um afago, um beijo, um gozo, e o fim pode bater à porta, trata-se de uma esquizofrenia coletiva, enfim, precisa-se demarcar território, dar uma demonstração de força, unir-se a outros clãs para ser ouvido ainda que não sejam as minhas lutas e falas, preciso pertencer a algo, me autodenominar, é preciso me ver como forte, somos cria do “efeito manada”, tão comum na psicologia das massas.

Apesar de não gostarmos ao nos deparar com tal realidade buscando sempre um motivo lógico acionando algum mecanismo de defesa para nos proteger, a verdade é que isso nos conforta e nos gratifica quando não temos a necessidade de adotarmos padrões de compaixão, pois retira a necessidade de nos conectarmos com as dores dos outros, e por conseguinte, com as nossas.
Infelizmente a nossa sociedade foge às raízes da sua construção da própria personalidade, onde viver as dores, decepções, angústias e tristezas são necessárias, imprescindíveis até, e fazem parte da nossa construção como indivíduos.

Viver cada momento, sentir cada sensação e sentimento, estar presente em cada experiência, crescer com as dificuldades, buscar novos objetivos a partir das desilusões e derrotas, não vier em negação, ser resiliente com tudo que não deu certo, são ações essenciais para vencermos como nos conectarmos com a nossa humanidade e chegarmos ao fim deste plano.

Rodrigo de Souza – Mestre em Psicologia – Saúde e Processos Psicossociais
@psicologiaempilulas

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