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Ocultando responsabilidades

Segunda-feira, 05 Maio de 2014 - 08:04 | Gessi Taborda


Ocultando responsabilidades

Ainda existem muitas indagações não respondidas em relação à grande cheia do Madeira e os interesses escondidos em afirmações dos grandes entes envolvidos. O colunista tem dificuldades em assimilar como verdade essa conversa do poder público de que “os prejuízos causados são da ordem de R$ 5 bilhões” para o município de Porto Velho. Fica uma impressão de que tal “levantamento” foi feito nas coxas, no chamado chutômetro. Parece ser possível ver, nessa afirmação tresloucada, a ânsia de quem manipula o dinheiro público para por as mãos nessa montanha de dinheiro que, com o tipo de dirigentes públicos rondonienses, acabará em outros nichos e não na reconstrução necessária.


TERGIVERSAÇÃO

TERGIVERSAÇÃO

Essa conversa de que  “casos fortuitos ou de força maior” não podem ser evitados é pura manobra escapista de quem pretende não pagar coisa alguma pelo caos da enchente. E enquanto não se definir responsabilidade, quem já está condenado a um futuro incerto são os antigos moradores dos bairros do Triângulo, Balsa, São Sebastião, Nacional e Belmont, na área urbana de Porto Velho; e mais as comunidades ribeirinhas de Vila de Abunã, Distrito de Jaci-Paraná, Linha 19 do Joana D’Arc, Bom Será, Brasileira, São Carlos, Ilha do Monte Belo, Itacoã, Bom Jardim, Curicacas, Tira Fogo, Reserva Extrativista Lago do Cuniã, Igarapé do Tucunaré, Nazaré.
Se as hidrelétricas de Santo Antônio e Jirau foram concebidas elas próprias como casos de força maior permanente – do formato do leilão e do financiamento até as licenças e outorgas –, não se pode falar de aleatoriedade, e sim de riscos planejadamente maquiados.

NEXO CAUSAL

“Precaver-se de fatos extraordinários não seria razoável”, afirmam os Consórcios depois de promoverem uma sequência de fatos extraordinários, como seguidas mortandades de peixes, extensos desbarrancamentos e a ampliação indeterminada das manchas de inundação de seus reservatórios.
Ora, os mais respeitados especialistas explicam: O nexo causal entre fator gerador e dano não pode ser imediato e unilinear, pois o “fator gerador” em questão são as grandes hidrelétricas mediadoras e potencializadoras de danos múltiplos: ao redefinirem a calha e o leito do rio, o seu nível e velocidade, além das propriedades bioquímicas da água em toda a área de influência das usinas, cujo perímetro é sabidamente muito mais amplo que o assumido no EIA-RIMA.

DANOS COLATERAIS

É preciso perguntar como se deu a distribuição, o espraiamento e tempo de residência dessas “águas excedentes” ao longo da calha do rio Madeira. E saber que segmentos sociais, grupos étnicos, áreas urbanas e quais atividades propiciadoras de renda foram as mais afetadas. Amazônia brasileira e boliviana, comunidades camponesas e ribeirinhas e bairros “beiradeiros” têm sido os destinatários preferenciais dos danos socioambientais, tidos como danos colaterais de um padrão de acumulação focado em commodities e em plantas industriais eletro-intensivas.
Apelar para a natureza como prova suficiente para enterrar dúvidas e controvérsias sobre o desastre é expediente de quem conta com uma ciência instrumental, mas que se faz crer neutra e autorreferente. Não se pode conferir a priori anterioridade e causalidade aos efeitos da natureza.

CIRCULO VICIOSO

O Rio Madeira é a divisa central do corredor inter-oceânico em implantação na região, corredor concebido para carrear recursos naturais exportáveis a largas distâncias, em um caso em que o uso define a logística que lhe cabe; logística que, por sua vez, intensifica este mesmo uso, em um círculo vicioso de especialização regressiva do território. Projetos petrolíferos, de mineração, hidrelétricos e de infraestrutura já esquadrinharam o que circunda o dito corredor. Enquanto isso, fluxos de populações desenraizadas pelo ciclo de expropriações anteriores tratam de ocupar suas posições nesse espaço como podem, seguindo a móvel e célere fronteira dos investimentos.
E assim caminha a fronteira elétrica na Amazônia e prossegue a construção social dos rios amazônicos como recursos energéticos, conversão feita de modo “sustentável” ou através de “usinas a fio d’água” ou “usinas-plataforma”. O “ambiental”, como reatividade formal e cínica aos requerimentos energéticos de nosso padrão de acumulação, produziu artefatos como “usinas-plataforma” e “usinas a fio d’água” a garantirem, por meio de carimbo normativo cientificizador, os menores impactos possíveis – depois, é claro, de atestada a irreversibilidade dos investimentos chamados estruturadores.

QUEM SIFU!


Recebem, em troca disso, junto com as populações locais, a maior parte da carga dos danos socioambientais – e de superexploração da força de trabalho – advinda da efetivação desses projetos. Novas zonas de sacrifício perfilam-se nas bordas das áreas/setores que apresentam alta lucratividade em meio ao último surto de “crise financeira” e a seus novos e brutais requisitos.
Chuvas implacáveis acima das usinas, em território boliviano, não constituem um álibi que se sustente, já que pareceres e estudos técnicos indicavam, desde 2007, a possibilidade de eventos climáticos extremos associados a processos de desmatamento e ocupação irregular do solo na Bacia do rio Madeira. E tais pareceres foram ignorados ou censurados durante os processos de licenciamento e outorga das UHEs.
Deveria haver consonância entre sistemas de alerta e adequação de operação dos reservatórios e planos de contingência publicizados. Ao invés disso, o que se viu foi uma disputa extemporânea entre as duas usinas pelo aumento das cotas dos seus respectivos reservatórios, para otimização do aproveitamento energético.

DEIXAR COMO ESTÁ

Os consórcios dizem não poderem assumir responsabilidade sobre “danos remotos” ou sobre efeitos colaterais “inevitáveis”. Mas sem que se avaliem em detalhe as dinâmicas de sedimentação em associação com os efeitos de remanso dos dois reservatórios, não é possível afirmar que a quantidade de chuva nas cabeceiras possa determinar o nível e a vazão do rio Madeira – pura e simplesmente. Pontuam, em defesa própria, que a falta de planejamento do solo na área de influência das hidrelétricas não pode ser “causa direta e imediata” das usinas.
Aqui a meia confissão basta para deixar claro que os consórcios privados não estão dispostos a verificar as muitas causas coadjuvantes desta catástrofe socioambiental, muito menos oferecer segurança mínima à população rondoniense que vive no entorno do projeto ou que depende da infraestrutura viária nele situada, como, por exemplo, a população do estado do Acre.

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